sexta-feira, 27 de maio de 2011

O monstro

Esta é a primeira vez que estou lhe dirigindo a palavra. Já fiz referências, mas o discurso direto parece agora apropriado. O motivo pelo qual o estou fazendo talvez não seja tão óbvio, por isso devo explicar-me: é uma mera tentativa desesperada de fazer cessar a dor. Eu tenho essa mania estranha de querer ser ouvido, mas nem sempre encontro alguém para me escutar. Por vezes, a escuta é interdita. O papel (mesmo o digital), por outro lado, é extremamente acolhedor nesse sentido. Ele não se evade porque está cansado, ou tem algo pendente a fazer. Parece-me também muito mais saudável do que efetivamente escrever para você, já que escrevo para me sentir melhor, mesmo que por um curto tempo. Se você de fato lesse o que tenho para dizer, alteraria o rumo de seu caminho, e não posso fazer isso novamente.

Eu imagino que faça algumas suposições sobre mim. Ou se isso não aconteceu ainda, talvez ocorra um pouco mais para frente. Eu fiz algumas a seu respeito, parcialmente porque tenho de ocupar meus dias, ou simplesmente porque não tenho outra opção. Primeiramente, queria dizer que não o odeio. O pouco que sei de você me diz que talvez até gostaria de conhecê-lo, caso não fossem as atuais circunstâncias. Foi há pouco dias, entretanto, que soube de sua idade. Devo dizer que isso me assustou um pouco - ou apenas me surpreendeu. Na verdade, é um indício a mais que me convenceu de que não fui trocado. O que é, por sua vez, um indicativo de quem não tenho motivos para o odiar. Eu não acho que sejamos parecidos, embora o olhar desatento pudesse encontrar algum tipo de semelhança no modo de encararmos a vida. Mas tenho a certeza de que temos vidas completamentes distintas e, mesmo que não seja necessariamente o caso, o encaramento há de ser diverso também.

Certamente a maior parte de meus pensamentos dirigem-se à comparação. Não entre nós dois - como expliquei -, mas entre a relação que ambos iniciamos. E meus pensamentos geralmente se concentram justamente em tentar revelar se ela é, de fato, a mesma. Há muitas motivos para pensar que sim. E muitos que indicam o sentido oposto. E, entre todas minhas dúvidas, talvez a maior seja saber se ele o ama. Não dizer que ama... isso eu sei que ele faz. Mas amor sentido. Eu nunca me senti amado por ele. Eu me lembro da primeira vez que fui a Guarapari depois que começamos a namorar. Foi logo na semana seguinte depois que ele veio aqui. Era um sábado e eu peguei o ônibus. Dois, na verdade. Talvez tenha demorado umas duas horas entre as caminhadas e as trocas de condução. Eu cheguei ao apartamento e ele não estava ainda lá. Liguei e algum tempo depois ele apareceu. Passamos a tarde juntos e, quando era por volta de cinco horas, ele disse que iria para casa. Eu não entendi. Para mim, estava implicitamente combinado que passaríamos a noite juntos. Eu perguntei por que ele não iria ficar. Ele explicou algo com poucas palavras sobre a família, o que eu sinceramente não entendi, ou acreditei. Só me recordo que a viagem de volta foi um dos momentos mais tristes por que já passei. Eu sentia tanto sua falta e a indiferença rasgava meu coração.

Eu acho que esse episódio no início de nossa relação traduziu - ou produziu - muito bem tudo que estava por vir. Eu sempre sofri o mal da grande indiferença. Por vezes, chego a pensar que esse comportamento beirava o sadismo (outras vezes, tenho certeza). Então eu penso agora em como ele é com você. Ele fala bonitas palavras ou uma ofensa disfarçada de verdade inevitável está sempre à disposição? Ele convida você para ir à sua casa ou há sempre uma desculpa para separar o seu mundo do seu mundo e evitar a invasão? Ele se comove quando você faz algum ato de amor ou recebe cada doação como se fosse retórica? Talvez ele tenha mudado. Mas, no fundo, isso não faria muito sentido. Porque o próprio ato de achar que se pode trocar um amor por outro, descartar um amor por outro, é sádico em definitivo. E se é isso que ele faz agora, como imaginar que a maldade se foi? Da última vez que conversei com ele - vocês já estavam juntos -, ele repetiu aquele discurso desgraçado de que desculpas são sempre inúteis. Eu sempre o ressenti por isso. Talvez até tenho o odiado. Talvez o faça agora. Porque tudo de que eu precisava eram essas desculpas inúteis que jamais recebi.

É possível também que ele goste de você. E, assim, não o trate da mesma forma como o fez comigo. Nesse caso, talvez vocês sejam bastante felizes. Mas eu não acho esse um cenário muito provável. Não por você. No fundo, eu sei que poderia ser qualquer pessoa: um final feliz simplesmente não combinaria com ele. Na mesma última conversa que tivemos, algo muito estranho aconteceu. Eu comentei o fato de que estava sofrendo muito e não conseguia entender por que ele não se solidarizava (eu sei que ele não falou para você, mas eu fui um bom namorado). E, para ele, esse fator não deveria ser equacionado em sua atual situação. Então eu falei que alguma coisa estava errada, que um novo amor não deveria nascer de um ato tão egoísta. Ele começou a gritar: "Você talvez entenda de leis, de viagens... mas você não sabe a verdade! Essa história de receber de volta, de pagar pelo que fez não existe. Você não sabe a verdade!" Ele estava gritando muito. "Eu não te amo mais. Eu não te quero mais". Naquela hora, eu parei. Tinha certeza de que não precisava falar mais nada, de convencê-lo de nada: ele já sabia. Era claro: ele não estava gritando comigo, mas sim com ele mesmo. Ele queria acreditar em suas palavras tão desesperadamente... acreditar que a vida é aleatória e que não há penas a se cumprir. E ele quis verdadeiramente acreditar que um dia me amou.

Então... na maior parte do tempo, eu sinto inveja de você. Penso em como seria se eu pedisse menos, e reclamasse menos, e quisesse menos. E, principalmente, inveja por não ser amado. Mas, às vezes também, eu me sinto livre e aliviado. Porque eu sei que ele é um monstro. Talvez ele nunca mostre essa faceta para você, mas tenho certeza que, volta e meia, você acorda e percebe algum grande arranhado nas suas costas, talvez até com um pouco de sangue escorrendo. Você pode decidir voltar a dormir. É o que mais provavelmente fará. Eu fiz isso por muitos noites, por quase todas. Mas um belo dia, um terrível e destruidor dia, eu fechei os olhos e apenas fingi que voltei a dormir. Foi aí quando abri os olhos e vi aquelas unhas grandes a arranhar a minha pele e um sorriso assustadoramente malvado em seu rosto tão belo.



Nenhum comentário:

Postar um comentário