sábado, 25 de setembro de 2010

III

No dia em que você se foi, eu sabia que era para sempre. Talvez essa certeza tenha me impulsinado de volta, e feito eu recuar novamente. Porque muitas coisas seriam para sempre. Você seria - para sempre - quem eu gostaria de ter ao lado. E - para sempre - eu não poderia tê-lo novamente.
Foi sobre isso que pensei enquanto voltava para casa. Sobre as coisas que perdi... É estranho. Porque não me deixava lembrar das coisas que havia ganhado: naquele instante, nada ganhado tinha. Agora você já não estava mais ali. E o para sempre foi mais concreto do que nunca.
Quando entrei no quarto, deparei-me com a carta de aceitação em cima da cama. Eu havia me esquecido. Havia esquecido que deveria começar a arrumar as malas, a empacotar os livros, a pensar sobre o que fazer com os móveis. Ela tinha tanto valor naquela manhã... agora, horas depois, tudo já não é o que era. E não só a carta, como tudo parecia não ser mais o que era; eu não ter mais o que tinha.
Então, naquela noite, eu dormi em uma cama que não era mais minha. E tive sonhos que sabia que já não eram mais meus.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

II

Eu não tinha completa razão sobre aquele dia: algo era diferente. Eu apenas não sabia ainda o quê. Não consigo me lembrar exatamente se eu, de fato, percebera alguma coisa. A perspectiva temporal normalmente traz algumas intereferências.
Eu cheguei em casa, tomei banho e coloquei a comida para esquentar. Enquanto aguardava, sentei no sofá e comecei a assistir ao noticiário. Nada de novo. Tudo de novo. Foi quando resolvi pegar o jornal escrito - ainda os faziam - e folhear as páginas vazias.
Não era para eu ter encontrado. Esses avisos sempre ficam perdidos, no meio de espaços a que ninguém dá atenção. Não era para eu ter lido. Mas era. E por isso eu li. Seu nome. Depois de tantos anos, de tanta abstração, você estava concreto novamente. Mas não tão concreto: aparecia em palavras que anunciavam o seu recente fim. Tinha sido no dia anterior. Enquanto eu me preparava para entrar no mundo, você dele saiu. Mas não fornecia maiores detalhes; apenas o que realmente importava. Eu não me supreendi, devo dizer. De sua partida, sim; de você voltar para dentro de minha casa, com certeza; mas não por você ter deixado outros para trás.
Acho que esse mundo de pensamentos duraram poucos segundos. Um mundo em poucos segundos. Eu fiquei ali, parado. Olhei para o papel e olhei para o nada. E quando finalmente percebi que nunca mais o veria, comecei a chorar um choro desesperado e o meu mundo também, por um breve instante, acabou.
E o breve instante tinha razão de ser. Era preciso me recompor, ou perderia a última chance de ver você. Então, eu deixei a comida para trás, troquei de roupa e entrei no carro em direção ao endereço indicado. Acho que não havia percebido ainda que não foram seus pais que colocaram o aviso no portal; embora nunca tivesse ido à sua casa - mesmo que você lá não mais morasse - eu sabia que não poderia ser para onde estava indo. A casa nova não era porque você passara a morar sozinho, nem porque suas pais se mudaram. Só quando estava na porta da casa, eu finalmente me dei conta que aquela era a casa de sua família.
Havia um certo número de pessoas, o qual não consegui precisar exatamente. Eu foquei na mulher que chorava ao lado do caixão, junto com três crianças ao lado. Talvez não eram três crianças, ou apenas uma. Eu diria que nenhum tinha menos de dez anos ou mais de dezesseis. Não posso dizer que não havia imaginado essa possibilidade; até tinha. Mas talvez não tenha dado tempo suficiente para elaborar qualquer pensando mais detalhado sobre como seria o Filipe pai de família. Naquele instante, eu me senti extremamente deslocado. Não sabia exatamente o que fazer. Não me senti no direito de me aproximar mais. Eu precisa o ver... e os passos não eram possíveis. Eu tive de me confortar naquele instante de que você não era mais meu. De que você não era de mais ninguém. Então eu escolhi um lugar ao fundo para sentar e observá-lo de longe. Era tão mais perto do que tinha feito por toda vida depois que minha vida finalmente começou - e acabou.
Eu poderia estar apenas repetindo a mesma cena de cerca de dez anos atrás. Havia então muitos anos que havíamos nos separado - talvez uns doze ou treze. À epoca, eu havia acabado de voltar para o estado, depois de passar uma longa temporada construindo parte da vida que tenho hoje. A volta para meu lugar de origem pode ter despertado essa vontade de reconstruir - ou de descobrir. Então, logo que cheguei, resolvi procurar novamente por você.
Eu tinha certeza de que você estaria no mesmo lugar. Fazendo as mesmas coisas. Não foi difícil achar algo cuja perda não saiu da minha cabeça em nenhum instante. Mas talvez fosse melhor ligar antes... avisar de minha chegada espontânea. O choque de ouvir sua voz primeiro poderia amortecer um choque maior. O problema é que não estava preparado para algo ainda mais: a sua negativa. Acho que foi por isso que não tive coragem de continuar. De certa forma, queria que você permanecesse em minha mente como o fizera até então: estático. Porque o tempo teria passado para mim, mas você ainda seria o mesmo. E era exatamente isso que me confortava. Então eu desisti.
E repeti novamente dessa vez. Olhei para seu corpo ao fundo... não vi seu rosto. E quando percebi que começaram a notar minha presença, eu fui embora. Foi o tempo suficiente, contudo, para que notar que a mulher abraçada com aquelas crianças olhou fixamente para meu rosto. E, naquele instante, eu tinha a certeza de que ela sabia quem eu era.


sábado, 4 de setembro de 2010

I

Ainda é estranho voltar para uma casa vazia. Depois de tantos anos, ainda é estranho. Mas, ao mesmo tempo, é também ainda confortante. É difícil dizer exatamente em que aspecto tenho esse incômodo. Talvez seja o fato de que nada disso tenha realmente sido escolha minha; talvez seja porque tudo foi escolha minha. Não valeria a pena dissecar todos os fios desse tecido... não quero perdê-lo novamente.
É possível que hoje tenha sido o dia por que eu me preparei toda minha vida. O mundo finalmente seria meu. Ganhei a chance de estar onde quero, fazendo as coisas que quero. Não vou ser ingênuo de ressalvar que estou sozinho; sei que foi essa a condição do negócio. Não por menos, contudo, volta e meia, eu lembro de você: lembro dos dias que passamos do juntos, dos dias que nos separaram, e do dia que você decidiu que a culpa tinha sido minha.
Foi. Eu havia pedido que você se transformasse em uma outra pessoa para que eu pudesse ser a pessoa que sonhava; você não aceitou. Você saiu por aquela porta e nunca mais voltou. Por algum tempo, eu até pensei que manteríamos contato, que seríamos 'bons amigos'. Mas isso não foi possível. Acho que eu trazia dor de mais para você - não pelas lembranças exatamente, ou, ao menos, lembranças do passado; talvez eu estivesse sim provocando em você pensamentos sobre o futuro, os quais você não queria ter.
Quando eu fiquei de pé hoje, de frente àquele amontuado de pessoas certinhas, eu sabia que deles não fazia; e sabia que todos dividiam essa consciência. A beleza de tudo estava justamente nesse fato: ser diferente foi o que me trouxera até ali - até aqui. Foi uma visão incrível olhar no rosto daquela fila de juristas que sabiam que eu tinha sido quem os tirou de seus postos... eu! E mesmo assim, eu havia sido escolhido para os representar, para ser a sua voz. E imaginar que tudo começou por um acaso - ? - , e agora estávamos ali... a venerar o destruidor.
Eu não tinha ainda trinta anos quando resolvi escrever o livro. Não era meu primeiro, mas seria o meu primeiro para tantos leitores. E eu nem sabia que eles viriam a existir. Leitores... essa palavra é tão engraçada, porque, no fundo, somos leitores de apenas um autor: nada mais é possível. Esse leitor eu sempre tive; eu sempre o fui. Então talvez estivesse apenas dando fala a vozes que perderam suas cordas e precisam de um meio. Talvez a razão de tudo isso tenha sido apenas o fato de eu ter sido um meio - esse meio.
'Como se constrói o direito', contudo, só foi publicado muitos anos depois de escrito. Foi preciso que eu fizesse toda uma carreira, que 'ganhasse um nome' para que finalmente pudesse ser publicado. De início, eu mesmo que encomendei uma edição independente. Alguns colegas do trabalho chegaram a ficar com alguns, mas nada muito animador. Não seria no meio jurídico que o livro ganharia fama. Demorei um tempo para descobrir que eu não havia escrito um texto para o juíz ou para a promotora: mas sim para a esposa do juíz e para os filhos da promotora. Assim, não foi a crítica interna ao métier que me supreendeu, mas os elogios exteriores.
E depois dos elogios, veio a represália. Eu havia colocado em cheque um ponto que não o poderia ser - que não podia nem ser mencionado. Pelo menos, não por que alguém que vivia do Judiciário. O criatura não deveria atacar a sua origem. Diziam... não era o que eu imaginara. Na minha cabeça, contrariamente, relevar as contradições de um sistema - naquele caso - era justamente reforçá-lo, porque este sistema era sustentado por suas próprias contradições. Ninguém ofendiasse pela frase de que o Direito é dialético; mas já não seria permitido dizer que ele vivia dessa dialética. Porque o grande contribuição da Justiça não seriam as respostas que produzia, mas o mero fato de produzir respostas. Isso era o que importava.
Só que o grande problema era revelar esse segredo porque, a partir do momento em que o conteúdo das respostas não fazia diferença, todos poderiam fornecê-las. A reserva de mercado havia sucumbido.
Então eu sabia que não eram aqueles que me criticaram que agora estavam a me aplaudir. Eram outros. Foram os que sobreviveram ao deixar mais alguns entrarem. Eu também já não era mais o mesmo - ao menos, não em tudo. O meu trabalho também já não era mais o mesmo. Eu voltava, contudo, para a mesma casa fazia, e tentava reconstruir os mesmos sonhos vazios. Alguma parte de mim havia mudado, é verdade. Mas outra parte parmenecia exatamente a mesma. E naquele dia fiquei imaginando se seria justamente essa última a que eu realmente queria mudar.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

A Sete Palmos

Há alguns dias, ouvi um comentário de meu amigo Rafael que me despertou a atenção. Após alguma frase minha - a qual não lembro exatamente - , ele disse algo do tipo: não entra na do Alexandre, ele tem um jeito estranho de enxergar a morte.

Não vou dizer que foi o seu comentário em si que me chamou a atenção. De fato, é possível que eu mesmo classifique meu modo de ver a morte como estranho. O que eu achei mais interessante foi o fato de minha colocação tê-lo marcado de alguma maneira, ao ponto de que ele relembrasse minhas palavras tempos depois.

Por isso, um pouco da motivação da escrita desse post seja ele - que tem se mostrado, realmente, como um assíduo inspirador de posts - , mas parte deve-se também ao seriado cujo título foi trazido no Brasil como 'A Sete Palmos'.

Embora a série tenha sido, com efeito, algo marcante, não chegaria ao ponto de falar que foi determinante para que eu mudasse o modo como via a morte. Poderia até dizer que seu papel foi resumido como mero expositor: as raízes já estavam lá desde muito antes.

A primeira coisa - e a mais importante - que gostaria de colocar é a seguinte: a morte salvou a minha vida. Colocado de uma forma mais clara, a morte passou a ser como um alívio, um limite que eu não sabia - ou percebia - que existia. A relevância da morte, assim, não é, para mim, seu evento, mas sim a sua mera possibilidade.

Quando eu era jovem, eu não feliz com a vida que tinha ganho. Eu sempre tive a impressão de que era menos, e que eu seria sempre menos. E que eu teria que desprender um esforço enorme, a cada dia que vivesse, que aos outros não seria exigido. Não era exatamente o fato de sentir atração por homens que fazia com que eu me sentisse menos - talvez isso fosse o menor dos problemas. O que realmente era aterrorizador era saber que eu jamais sentiria atração por mulher. E o era porque eu tinha a plena certeza que eu iria casar, ter filhos e sentir a todo momento a dor de ser - ou não ser - aquilo que meu coração dizia que eu não era.

A vida era para mim, então, um sofrimento eterno. Um sofrimento solitário - eu diria mais que solitário, pois a solidão às vezes nos faz bem; o sofrimento que sentia não era nada além de dor - , cujo o fim não existia. Alguns poderiam ler esse texto e pensar: claro que existia essa fim - e existe de diversas formas. É.. Mas, para mim, naquele momento, não existia: eu era muito jovem, e não tinha percebido ainda que a vida passava; eu não havia vivido o suficiente para saber disso. A sucessão dos anos de que as pessoas tanto falavam, as mudanças, o amadurecimento, o envelhecimento, o fim da vida... tudo isso eram palavras que eu não apreendia - eu podia definir, mas não podia verdadeiramente compreender.

Por tudo isso, a cada dia, eu precisava tomar a mesma decisão: continuar ou cessar a vida? O pouco que sabia tinha de ser o suficiente para eu decidir; os poucos segundos entre pular da sacada e permenecer estático precisam ser o bastante. E o foram... por muito tempo. Foram poucos anos que duravam mais do que - provavelmente - todo os outros que o seguiriam.

Quando tinha cerca de 14 anos, eu cansei finalmente. Não sei por quê, exatamente. E, para ser sincero, nem sei se realmente foi o cansaço que interrompeu o eterno círculo. Talvez não. Talvez o próprio passar do tempo tenha sido suficiente. Ou talvez eu tenha chegado a um ponto em que o dilema tenha mudado: continuar ou cessar as sucessivas decisões? Creio que poderia ter caminhado para qualquer um dos lados... mas, novamente, por algum acaso, eu bandei para o fim das decisões. E não porque eu havia chegado a uma resposta, mas porque enxerguei o erro na minha pergunta.

Eu não poderia jamais decidir entre continuar ou cessar a vida. Essa decisão já havia sido tomada há muito... e não por mim. A vida iria cessar. Finalmente eu percebera que meu sofrimento não era eterno. Iria acabar... E não apenas esse sofrimento... qualquer sofrimento. Tudo iria eventualmente cessar. E mesmo que eu esbarrasse com algo grande demais, ou difícil demais, eu poderia sempre - ou quase sempre - decidir por não ter de suportá-lo. Eu finalmente vi que a morte era o grande presente que a vida tinha me dado.

No instante em que ocorreu essa percepção, eu não tinha mais medo: eu estava livre. E com essa liberdade pude começar a vislumbrar tanto mais: finalmente vi que viver com medo não era exatamente viver, que tudo, em algum dia, teria de ser deixado para trás, que as escolhas que faço - no fundo - não fazem a menor diferença. E mesmo que tudo isso não fosse verdade, o fato de eu acreditar já era suficiente para mudar completamente a minha vida. Pois o modo como eu represento o mundo guia as minhas ações.

Então eu faço aqui referência a meu outro 'amig#' - ele vai entender essa grafia - Pedro Demenech, que talvez não entenda por que eu tenho interesse na história vista pelos olhos dos que a viveram e não naquela vista pelos olhos meus. Porque eu aprendi que na vida o que importa é aquilo em que acreditamos - e só isso - , o resto simplesmente não faz a menor diferença. E mesmo que acreditemos nas coisas que, de fato, não o são... também não importa: elas passam a existir simplesmente porque as cremos assim.

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A Sete Palmos (Six Feet Under) conta a história de uma família proprietária de uma funerária. Eu conheci a série no ano de 2006. Muitos dos episódios, assisti junto com meu antigo namorado Daniel, quando ainda morava com meu pai.

Em um desses dias, estávamos na sala vendo um episódio quando meu pai chegou. Ele puxou Daniel pelo braço e mandou gritando ele sair da minha casa. Eu disse que ele não poderia fazer isso; ele o fez assim mesmo. No mesmo dia, eu fui morar com minha mãe.

Um tempo depois, voltei, de uma viagem, para descobrir que Daniel não estava mais aqui. Ele se mudara para outro estado, sem terminar o namoro, sem dizer adeus. E eu o amava do mesmo jeito que amo hoje. Tive mais uma vez um sofrimento profundo. Já havia aprendido, contudo, que não havia decisão a se tomar.

Em 2009, eu aproveitei algum do tempo - que me resta - para re-escrever o final de nossa história, cujo texto eu publiquei nesse blog aqui.