segunda-feira, 16 de agosto de 2010

A palavra do dia é... Cidadania

O que você diria se algúem chegasse para você e perguntasse: você sabe o que é cidadania? É possível que você tente começar a frase "cidadania é..." umas duas ou três vezes e não consiga, de fato, terminá-la. Mas a mesma pessoa pode facilitar as coisas um pouco e mudar a pergunta para: o que faz um bom cidadão? Essa é um pouco mais fácil, não concorda? Um bom cidadão - diria você - é aquele que conhece seus direitos, que cumpre seus deveres, que obedece as leis, que tem orgulho de seu país... E talvez você continuasse listando muitas coisas que viriam à sua cabeça e, mesmo assim, a resposta para a primeira pergunta permaneceria um grande mistério. Essa história toda, contudo, não é para assustá-lo, ou deixá-lo achando que não sabe se expressar. Definir a palavra cidadania é realmente uma tarefa complicada. Faça um teste: chegue em casa e repita a mesma pergunta para seu pai, ou sua mãe (ou mesmo os dois ao mesmo tempo). É bem provável que você veja um adulto completamente sem-graça que, ao menor sinal de uma distração sua, corra em busca do dicionário mais próximo a fim de evitar pagar um mico daqueles.
Agora, você me pergunta: por que é tão difícil afinal definir o que seja cidadania, se essa é uma palavra que a gente fala e ouve o tempo todo? Vou contar um segredo para vocês: há um bom tempo, os historiadores perceberam que o homem tem a estranha mania de usar palavras já em uso para dar nome a coisas novas. É o que acontece, por exemplo, com a palavra rede. Se eu digo rede, você muito provalvemente pensa em um monte de computadores ligados por diferentes fios ou em seu notebook com o MSN aberto, com o qual você conversa com seus amigos - mesmo os que foram fazer intercâmbio para o outro lado do mundo. Mas, quando eu digo a mesma palavra para a sua avó, ela irá pensar em um pedaço de pano que a gente amarra entre suas pilatras para poder dormir, ou em um longo emaranhado de fio que os pescadores usam para tirar milhares de peixes do mar. É exatamente isso que acontece com a palavra cidadania: já tem bastante tempo que o homem usa essa palavra para falar de coisas diferentes que aconteceram com a humanidade e, quando a ouvimos, todas essas coisas misturadas aparecem na nossa cabeça e a gente fica um pouco perdido. Por isso, quando alguém fizer a pergunta para você, seja bastante esperto e diga: de qual cidadania você está falando? Ou melhor, cidadania de quando? De onde?
Hoje eu vou falar para vocês um pouco sobre o que os homens chamavam de cidadania no Brasil do século XIX. Aí você pergunta: mas como você pode saber o que homens que já nem vivem mais achavam que era cidadania? Os historiadores inventaram um jeito de fazer isso: a gente pega livros escritos na época, estuda as leis que foram criadas, as cartas que nossos pensadores trocavam, os discursos que proferiam... e com tudo isso a gente consegue imaginar - porque historiador tem que ser, antes de tudo, bastante imaginativo - o que eles pensavam quando ouviam a palavra cidadania. E, ao fazer isso, podemos fazer uma comparação com o que as pessoas pensam hoje, ver o que mudou e o que continua parecido. Fazendo isso, o historiador ajuda as pessoas a não caírem no mesmo erro de novo, ou a resgatar algo muito bacana que podemos ter deixado para trás.
O século XIX foi realmente especial para nosso país: foi quando nos separados do reino português e nos tornamos um império; e, logo lá no finalzinho, escolhemos nos tornar uma república. Sabe por que é tão importante estudar esse período? Porque foi nele que aprendemos a ser o que somos, foi então que tomamos muitas decisões que marcam até hoje a nossa vida. Quando o Brasil virou um país em 1822, ele ganhou logo depois uma constituição. Eu digo ganhou porque era a primeira vez que isso acontecia. Até então, o rei governava soberano; ele que ditava o que se podia e o que não se podia. Influenciados pelas ideias das grandes revoluções - principalmente a francesa e a americana - os brasileiros queriam ser os donos do poder, mesmo que tivessem um rei. A gente, na verdade, gostou muito de ser um império. É comum a gente pensar que um rei é sempre aquele cara que manda em tudo, que pode tudo. Mas não é bem assim. É possível ter um rei que tem de obedecer as leis, porque se não o fizer, corre o risco de ser expulso do trono. Foi isso que aconteceu com o Brasil: criamos uma monarquia constitucional.
A nossa constituição (de 1824) trouxe muitas coisas novas. Muita gente costuma falar mal dessa carta, dizer que foi outorgada por Dom Pedro I. Bom, é verdade, ela foi outorgada (isso que dizer que não foram os deputados e senadores que a escreveram, mas sim o imperador e seus assessores). Mas pense bem: até então, não tínhamos constituição nenhuma! Ter uma - mesmo que outorgada - já era uma novidade muito grande. Seria estranho se Dom Pedro não lutasse para manter as regras como ele achasse apropriado, afinal, era também era um homem, tinha suas ambições, seus medos e desejos. A verdade mais importante - acho eu - é que essa carta (podemos chamar a constituição de carta) era muito avançada para sua época - ou seja, os pensadores do outros países assim achavam - e previa coisas que não existiam em outros países, coisas novas, que envolviam a chamada participação popular. Isso era algo muito novo: o rei não tomaria mais as decisões sozinhos; a assembleia geral, formada por senadores e deputados, que iria criar as leis.
Outra novidade muito grande que nossa constituição imperial trazia era o fato de o rei não decidir mais quem deveria ocupar certos cargos. Um dos exemplos mais marcantes foi o cargo de juiz de paz. Hoje, quando a gente fala em juiz de paz, logo pensamos em casamentos. Naquela época, contudo, casamento era coisa de igreja e juiz de paz era o novo magistrado que julgava a maioria dos processos. E o que tinha de especial esse juiz? Esse juiz era especial porque ele era eleito. Isso mesmo: eram as pessoas da comunidade que decidiam quem seria o juiz que julgaria seus processos. E tinha mais: era ele quem cuidava das ruas, da segurança, organizava as eleições e conciliava aqueles que procuravam o judiciário.
Mas o que o juiz de paz tinha a ver com a cidadania? Ora, os brasileiros cidadãos eram que escolhiam esse juiz. Até então o comum era o rei decidir quem seriam todos magistrados. E para ser juiz era preciso ser cidadão: era isso que dizia nossa Constituição. Assim, se você perguntasse para um brasileiro o que era ser um bom cidadão, ele poderia responder: ser um bom cidadão é poder votar no juiz ou mesmo virar o juiz da minha comunidade. Isso não era à toa: os antigos magistrados eram, em sua maioria, portugueses e os brasileiros tinham muito medo de que eles tomassem decisões que ajudassem Portugal a reconquistar sua domínio sobre o Brasil. Com a mudança, os novos juízes seriam brasileiros e seriam os próprios brasileiros quem os escolheriam.
É muito comum a gente ouvir falar mal dessas nossas primeiras eleições. Dizer que eram tumultuadas, desonestas e que pouca gente podia votar por causa de uma restrição aos que não tinham uma renda mínima. Quem faz esse tipo de crítica sem dar maiores detalhes está sendo, na verdade, bastante injusto. Isso porque é muito fácil para nós dizer o que é bom ou ruim sobre algo que aconteceu no passado, mas sobre o que não temos muita informação. É preciso se informar para não ficar repetindo bobagens de quem, no fundo, não reflete muito sobre as coisas que diz. Temos que lembrar que foi no século XIX que tivemos nossas primeiras eleições, estávamos experimentando coisas novas. E, principalmente, estávamos ainda discutindo o que exatamente significava votar; o que exatamente significava ser cidadão. Exigir que alguém tivesse uma renda mínima não era nada estranho para nossos antepassados, pelo contrário. O salário de um deputado não era alto, quem não tivesse uma boa fonte de renda não conseguiria sobreviver na capital carioca com o que ganhava. Ao longa da história, ser cidadão, na maioria das vezes, implicava em ter riqueza o suficiente para poder dispor de tempo para participar da política. Ademais, o Brasil era um dos países com maior porcentagem de eleitores em todo mundo(13%)*; foi apenas em 1881 que resolvemos reduzir esse número para cerca de 1% da população.
Na minha singela opinião, não creio que as condições de elegibilidade de nossa antiga constituição representam algo pior do que temos hoje: se antes era preciso ter dinheiro para entrar na política, hoje se entra na política para se ter dinheiro. É por isso que eu olho com muita admiração para nosso passado e vislumbro as formas criativas que nós brasileiros inventamos para construir nossa nação, para definir o que é cidadania para a gente. É claro que cometamos muitos erros - muitos - mas nada mais esperável. Afinal, pessoas erram e acertam todo dia; o mais importante é saber reconhecer os erros e admirir os acertos.

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Esse texto foi produzido como minha contribução para um desafio proposto por meu amigo Rafael Hygino para escrevermos um texto "voltado para alunos do Ensino Médio, que seja preciso o suficiente, mas que também não seja maçante." Essa história começou com um debate sobre um famigerado livro e terminará - espero eu - em uma gostosa discussão sobre como ensinar história. Para saber mais sobre o juiz de paz imperial, sugiro a leitura de minha dissertação de mestrado, disponível no seguinte endereço http://juizdepaz.x10.mx/ .

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De acordo com o censo de 1872, 13% da população total, excluídos os escravos, votavam. Segundo cálculos do históriador Richard Graham, antes de 1881 votavam em torno de 50% da população adulta masculina. Para efeito de comparação, observe-se que em torno de 1870 a participação eleitoral na Inglaterra era de 7% da população total; na Itália, de 2%; em Portugal, de 9%; na Holanda, de 2,5%. O sufrágio universal masculino existia apenas na França e na Suíça, onde só foi introduzido em 1848. Participação mais alta havia nos Estados Unidos, onde, por exemplo, 18% da população votou para presidente em 1888. Mas, mesmo neste caso, a diferença não era tão grande. (Carvalho, José Murilo de. Cidadania no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileiro, 2002. p.31)

2 comentários:

  1. haha, muito bom. Tu est vraiment très sage!

    Só uma sugestão. Os parágrafos estavam muito grandes, tornando a leitura um pouco cansativa. Faça parágrafos menores ;)

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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