terça-feira, 7 de setembro de 2010

II

Eu não tinha completa razão sobre aquele dia: algo era diferente. Eu apenas não sabia ainda o quê. Não consigo me lembrar exatamente se eu, de fato, percebera alguma coisa. A perspectiva temporal normalmente traz algumas intereferências.
Eu cheguei em casa, tomei banho e coloquei a comida para esquentar. Enquanto aguardava, sentei no sofá e comecei a assistir ao noticiário. Nada de novo. Tudo de novo. Foi quando resolvi pegar o jornal escrito - ainda os faziam - e folhear as páginas vazias.
Não era para eu ter encontrado. Esses avisos sempre ficam perdidos, no meio de espaços a que ninguém dá atenção. Não era para eu ter lido. Mas era. E por isso eu li. Seu nome. Depois de tantos anos, de tanta abstração, você estava concreto novamente. Mas não tão concreto: aparecia em palavras que anunciavam o seu recente fim. Tinha sido no dia anterior. Enquanto eu me preparava para entrar no mundo, você dele saiu. Mas não fornecia maiores detalhes; apenas o que realmente importava. Eu não me supreendi, devo dizer. De sua partida, sim; de você voltar para dentro de minha casa, com certeza; mas não por você ter deixado outros para trás.
Acho que esse mundo de pensamentos duraram poucos segundos. Um mundo em poucos segundos. Eu fiquei ali, parado. Olhei para o papel e olhei para o nada. E quando finalmente percebi que nunca mais o veria, comecei a chorar um choro desesperado e o meu mundo também, por um breve instante, acabou.
E o breve instante tinha razão de ser. Era preciso me recompor, ou perderia a última chance de ver você. Então, eu deixei a comida para trás, troquei de roupa e entrei no carro em direção ao endereço indicado. Acho que não havia percebido ainda que não foram seus pais que colocaram o aviso no portal; embora nunca tivesse ido à sua casa - mesmo que você lá não mais morasse - eu sabia que não poderia ser para onde estava indo. A casa nova não era porque você passara a morar sozinho, nem porque suas pais se mudaram. Só quando estava na porta da casa, eu finalmente me dei conta que aquela era a casa de sua família.
Havia um certo número de pessoas, o qual não consegui precisar exatamente. Eu foquei na mulher que chorava ao lado do caixão, junto com três crianças ao lado. Talvez não eram três crianças, ou apenas uma. Eu diria que nenhum tinha menos de dez anos ou mais de dezesseis. Não posso dizer que não havia imaginado essa possibilidade; até tinha. Mas talvez não tenha dado tempo suficiente para elaborar qualquer pensando mais detalhado sobre como seria o Filipe pai de família. Naquele instante, eu me senti extremamente deslocado. Não sabia exatamente o que fazer. Não me senti no direito de me aproximar mais. Eu precisa o ver... e os passos não eram possíveis. Eu tive de me confortar naquele instante de que você não era mais meu. De que você não era de mais ninguém. Então eu escolhi um lugar ao fundo para sentar e observá-lo de longe. Era tão mais perto do que tinha feito por toda vida depois que minha vida finalmente começou - e acabou.
Eu poderia estar apenas repetindo a mesma cena de cerca de dez anos atrás. Havia então muitos anos que havíamos nos separado - talvez uns doze ou treze. À epoca, eu havia acabado de voltar para o estado, depois de passar uma longa temporada construindo parte da vida que tenho hoje. A volta para meu lugar de origem pode ter despertado essa vontade de reconstruir - ou de descobrir. Então, logo que cheguei, resolvi procurar novamente por você.
Eu tinha certeza de que você estaria no mesmo lugar. Fazendo as mesmas coisas. Não foi difícil achar algo cuja perda não saiu da minha cabeça em nenhum instante. Mas talvez fosse melhor ligar antes... avisar de minha chegada espontânea. O choque de ouvir sua voz primeiro poderia amortecer um choque maior. O problema é que não estava preparado para algo ainda mais: a sua negativa. Acho que foi por isso que não tive coragem de continuar. De certa forma, queria que você permanecesse em minha mente como o fizera até então: estático. Porque o tempo teria passado para mim, mas você ainda seria o mesmo. E era exatamente isso que me confortava. Então eu desisti.
E repeti novamente dessa vez. Olhei para seu corpo ao fundo... não vi seu rosto. E quando percebi que começaram a notar minha presença, eu fui embora. Foi o tempo suficiente, contudo, para que notar que a mulher abraçada com aquelas crianças olhou fixamente para meu rosto. E, naquele instante, eu tinha a certeza de que ela sabia quem eu era.


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