sábado, 4 de setembro de 2010

I

Ainda é estranho voltar para uma casa vazia. Depois de tantos anos, ainda é estranho. Mas, ao mesmo tempo, é também ainda confortante. É difícil dizer exatamente em que aspecto tenho esse incômodo. Talvez seja o fato de que nada disso tenha realmente sido escolha minha; talvez seja porque tudo foi escolha minha. Não valeria a pena dissecar todos os fios desse tecido... não quero perdê-lo novamente.
É possível que hoje tenha sido o dia por que eu me preparei toda minha vida. O mundo finalmente seria meu. Ganhei a chance de estar onde quero, fazendo as coisas que quero. Não vou ser ingênuo de ressalvar que estou sozinho; sei que foi essa a condição do negócio. Não por menos, contudo, volta e meia, eu lembro de você: lembro dos dias que passamos do juntos, dos dias que nos separaram, e do dia que você decidiu que a culpa tinha sido minha.
Foi. Eu havia pedido que você se transformasse em uma outra pessoa para que eu pudesse ser a pessoa que sonhava; você não aceitou. Você saiu por aquela porta e nunca mais voltou. Por algum tempo, eu até pensei que manteríamos contato, que seríamos 'bons amigos'. Mas isso não foi possível. Acho que eu trazia dor de mais para você - não pelas lembranças exatamente, ou, ao menos, lembranças do passado; talvez eu estivesse sim provocando em você pensamentos sobre o futuro, os quais você não queria ter.
Quando eu fiquei de pé hoje, de frente àquele amontuado de pessoas certinhas, eu sabia que deles não fazia; e sabia que todos dividiam essa consciência. A beleza de tudo estava justamente nesse fato: ser diferente foi o que me trouxera até ali - até aqui. Foi uma visão incrível olhar no rosto daquela fila de juristas que sabiam que eu tinha sido quem os tirou de seus postos... eu! E mesmo assim, eu havia sido escolhido para os representar, para ser a sua voz. E imaginar que tudo começou por um acaso - ? - , e agora estávamos ali... a venerar o destruidor.
Eu não tinha ainda trinta anos quando resolvi escrever o livro. Não era meu primeiro, mas seria o meu primeiro para tantos leitores. E eu nem sabia que eles viriam a existir. Leitores... essa palavra é tão engraçada, porque, no fundo, somos leitores de apenas um autor: nada mais é possível. Esse leitor eu sempre tive; eu sempre o fui. Então talvez estivesse apenas dando fala a vozes que perderam suas cordas e precisam de um meio. Talvez a razão de tudo isso tenha sido apenas o fato de eu ter sido um meio - esse meio.
'Como se constrói o direito', contudo, só foi publicado muitos anos depois de escrito. Foi preciso que eu fizesse toda uma carreira, que 'ganhasse um nome' para que finalmente pudesse ser publicado. De início, eu mesmo que encomendei uma edição independente. Alguns colegas do trabalho chegaram a ficar com alguns, mas nada muito animador. Não seria no meio jurídico que o livro ganharia fama. Demorei um tempo para descobrir que eu não havia escrito um texto para o juíz ou para a promotora: mas sim para a esposa do juíz e para os filhos da promotora. Assim, não foi a crítica interna ao métier que me supreendeu, mas os elogios exteriores.
E depois dos elogios, veio a represália. Eu havia colocado em cheque um ponto que não o poderia ser - que não podia nem ser mencionado. Pelo menos, não por que alguém que vivia do Judiciário. O criatura não deveria atacar a sua origem. Diziam... não era o que eu imaginara. Na minha cabeça, contrariamente, relevar as contradições de um sistema - naquele caso - era justamente reforçá-lo, porque este sistema era sustentado por suas próprias contradições. Ninguém ofendiasse pela frase de que o Direito é dialético; mas já não seria permitido dizer que ele vivia dessa dialética. Porque o grande contribuição da Justiça não seriam as respostas que produzia, mas o mero fato de produzir respostas. Isso era o que importava.
Só que o grande problema era revelar esse segredo porque, a partir do momento em que o conteúdo das respostas não fazia diferença, todos poderiam fornecê-las. A reserva de mercado havia sucumbido.
Então eu sabia que não eram aqueles que me criticaram que agora estavam a me aplaudir. Eram outros. Foram os que sobreviveram ao deixar mais alguns entrarem. Eu também já não era mais o mesmo - ao menos, não em tudo. O meu trabalho também já não era mais o mesmo. Eu voltava, contudo, para a mesma casa fazia, e tentava reconstruir os mesmos sonhos vazios. Alguma parte de mim havia mudado, é verdade. Mas outra parte parmenecia exatamente a mesma. E naquele dia fiquei imaginando se seria justamente essa última a que eu realmente queria mudar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário