segunda-feira, 26 de julho de 2010

O fardo da História

Quando eu era a criança, costumava brincar de encontrar novas formúlas matemáticas para problemas que minhas professoras diziam que não havia como se resolver. Eu me lembro que passei muito tempo tentando descobrir uma forma de saber se um número era primo, que não fosse usando aquelas divisões sucessivas intermináveis - que, ao menos, para mim, na época, soava como um método arcaico demais. Fazia contas, substituições, hipóteses... tudo por conta de uma ideia fixa de encontrar uma caixinha mágica em que, uma vez depositado um número qualquer, saísse uma das duas respostas (sim ou não), sem grandes complicações. Também me lembro de quando tentei encontrar uma forma de resolver equações de segundo grau que não usasse aquela regra de decomposição segundo a qual o aluno tinha que fazer suposições para encontrar uma produto de equações equivalente à primeira. Até consegui achar uma fórmula que funcionava para alguns casos, para descobrir meses depois que um tal de Bháskara tinha encontrado muito anos antes uma solução muito mais simples...
É verdade; eu sempre fui um apaixonado pelo números. Eu tinha uns 3 anos, eu acho, e sabia escrever os números só até 10, ou 11, e me lembro que um dia sentei na mesa da cozinha com um papel de presente virado ao avesso e um lápis, e pedi para minha tia Ana ir ditando para mim como escrever os números maiores. Eu dizia: o que vem depois do onze? Ela dizia: doze. E eu dizia: como se escreve? E ela dizia: um e depois dois. E eu escrevia 1-2. E o que vem depois de doze? E essa história continua por muito tempo - pelo menos, pareceu-me muito tempo-, e talvez, com sorte, tivéssemos chegado até o trinte, ou o quarenta.
Eu também me lembro que, quando estava na oitava série, - naquela época, o último ano do ginásio - peguei um livro de matemática do segundo grau e comecei a estudar. Eu acordava todo dia às cinco horas e ficava, durante um pouco mais de uma hora, estudando, um capítulo por dia, lendo e fazendo os exercícios. Em pouco mais de dois meses, tinha terminado toda matéria de matemática do segundo grau. Tentei fazer o mesmo com a química e a biologia; em vão, eu não conseguia entender sozinho o que lia naqueles livros.
Essa foi mais ou menos a vida até meus vinte e poucos anos. Fiz a graduação em um curso que me ensinou exatamente a fazer aquilo que tanto procurava quando menino: construir uma caixinha em que, inserido um número, ela devolvesse uma resposta sim ou uma resposta não. Nada mais simples.
Eu não sei por que exatamente, mas comecei a procurar outras caixinhas com que brincar. Eu tinha vinte e dois anos e resolvi começar a ler livros de história. Como era de se esperar, eu tentava fazer com a história exatamente aquilo que fazia com os números: encontrar fórmulas fixas que pudessem me predizer um acontecimento subsequente. Tudo que eu queria era decorar um evento-semente e, por meio da dedução, toda a história da humanidade poderia ser revelada como no derrubar das peças enfileiradas de dominó. Em vão. Contudo, isso não era motivo para me desanimar; pelo contrário. Eu ficava fascinado em como aqueles homens que escreviam a história conseguiam descobrir formas incríveis de juntar acontecimentos e descrever com tanta precisão algo tão distante de minha realidade. Eu os considerava verdadeiros bruxos e morria de inveja por não saber aquela fórmula mágica que os possibilitava de desvender os mistérios do passado com tamanha eficiência. Eu tinha a certeza que jamais poderia aprender como desvender a fórmula mágica que revelasse os segredos da História. As minhas professores de escola diziam: História não se decora, se aprende. E eu queria tanto aprender a aprender.
Passei muito tempo para descobrir que a único coisa que os professores de história esperavam de mim era que eu escrevesse um texto longo, com muitas informações detalhadas e que fizesse algum tipo de link entre elas - qualquer link, mas preferencialmente algum que ele julgasse mais rebuscado. E, fazendo isso, consegui passar no vestibular de Direito. Ou, acho que foi assim.
Foi muito difícil para mim abrir mão das minhas caixinhas. Porque aprendi que entrar no mundo História era justamente inverter o caminho que tinha percorrido por toda a vida: eu não deveria encontrar soluções para os problemas dados, mas sim encontrar problemas em um mundo que já era me dado. E o mundo, nesse caso, é uma solução. É a solução. Digo isso, porque o mundo é único e, por mais que se pense que podemos mudá-lo, ou que poderíamos tê-lo mudado, o caminho percorrido de fato - até onde sei - é um só.
Não sei se consegui passar o sentimento que essa história me desperta. Estou fazendo referência à segurança. O mundo dos números sempre foi-me muito seguro, porque eu não dependia de tentar imaginar o que outra pessoa queria que eu imaginasse. O mundo dos números é como o nosso mundo: é um caminho só. Mesmo que você ache que esteja em um caminho diferente - muitos professores de matemática insistem em dizer: há inúmeras meios de solucionar um problema -, o seu destino é um só. E se você chegou lá sem tropeço, a chance de alguém criticá-lo é quase nula.
Talvez o fardo da História seja justamente o fato de não haver essa destino. Os filósofos da história até tentaram - ou ainda tentem - dar à História essa segurança encontrada em outros mundos, mas a maioria dos historiadores tenderão a acreditar - atualmente - que essa é uma tarefa fadada ao fracasso.
Ou talvez o fardo da História seja a busca de algum destino; ou, ao menos, um destino por etapas; ou, quem sabe, um leque limitado de destinos. Os links que os professores tanto procuram nos textos dos alunos - que alguns historiadores atuais chamam de laços - são apenas objetos de desejo atuais inteiramente substitutíveis por outros cuja enumeração Hayden White (de quem eu roubei o título deste post) já exemplificou.
Eu, particularmente, prefiro não carregar esse fardo. A beleza da História esteja talvez justamente em sua discussão estética, na liberdade de escolher seus meios e destinos, na infinidade de possibilidades que o historiador têm para descrever o mesmo cenário, explicar o mesmo acontecimento e - por que não? - criar seus próprios acontecimentos. Mas, para isso, seria preciso admitir que os cenários são criados, e os acontecimentos também. Perderiam os professores de história seu emprego se isso acontecesse? Ou melhor, se essa discurso ganhasse mais vozes? Os textos que escrevemos são filhos de seu tempo, porque somos filhos de nosso tempo e talvez a própria História só exista como filha de uma história que os historiadores insistem - para minha felicidade - em contar.

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