sábado, 17 de julho de 2010

Todos Helen Keller

Eu estava conversando com uma amiga há algumas semanas sobre como eu sentia falta de escrever. Eu passei a maior parte de minha adolescência e início de vida adulta (entre 21 e 23 anos, eu diria - apenas no sentido de que eu considero esse o início de minha vida adulta) escrevendo muito frequentemente. Em algumas épocas, não houve dias sem palavras escritas; em outras, o lapso poderia ser um pouco maior; mas a verdade é que escrever sempre fez parte de minha vida. E fez talvez não pelo ato em si - ou até pelo ato em si -, mas porque tem como resultado uma prática que nunca abandonei (mesmo após ingressar mais adentro da vida adulta): aquela de reler o que escrevia. Reler não no dia seguinte, ou no mês seguinte; mas possivelmente anos depois. Reler palavras que já nem me recordo que havia escrito tem um efeito que considero psicodélico: a recorrência do mesmo sentimento, ou do mesmo pensamento. É como se um ato da vida que até então parecia ser único pudesse ressurgir tempos depois, mostrando-se não morto, mas adormecido; efeito esse que talvez seja o que esteja procurando agora garantir para anos futuros, aumentando as suas chances de ocorrência com o aumento de número de palavras que coloco no papel.
Quis colocar essa pequena introdução porque me sinto um pouco na obrigação de explicar por que me virei para um meio cibernértico desta vez (normalmente estava restrito a folhas ou editores de textos); porque parece um meio seguro de guardar por mais tempo - não me esquivarei de fazer cópias das páginas para maior segurança - esse alucinógeno que um dia deu título a um dos livros que mais gosto de rever.
Mas, entrando mais diretamente no assunto deste post, queria falar um pouco sobre uma ideia que volta e meia coloco em um texto. Normalmente uso a metáfora de um feto na barriga da mãe; hoje, contudo, vou usar uma diferente. Nem sei se posso classificar como metáfora - porque acredito ser representação bem mais direta (caso possa usar esses termos juntos) - de passar a minha ideia do que seja a realidade.
Creio que muitos que lerem este texto já devam ter ouvido falar de Helen Keller. Possivelmente a maioria não. Conheci essa fascinante personagem no ano passado, após assistir ao filme The Miracle Worker, que trata da história de como uma menina que ficou cega e surda aos 9 meses de idade aprende, no final da infância, a utilizar a linguagem. Uso o termo linguagem aqui no sentido de uma forma de comunicação complexa, que se manifesta concretamente por meio das línguas.
O que mais me fascina na história de Helen não é exatamente o fato de ela ter escrito livros, ou cursado faculdade; mas sim o modo como sua existência nos mostra o quanto somos capazes de negligenciar. Digo isso porque Helen desenvolveu inúmeras formas de comunicação com sua professora Anne Sullivan; formas inimagináveis para a maioria das pessoas que ouvem e/ou enxergam. Helen podia, por exemplo, compreender o inglês falado, usando o tato para sentir o movimento da face e do pescoço e a vibração do ar saindo da boca. Quando adolescente, ela já era capaz de, usando sinais soletrados, literalmente escrever 80 palavras por minuto nas mãos de Anne, de modo que essa era a forma mais eficiente de comunicação entre as duas.
Mas por que estou falando de Helen? Creio que posso usar seu mundo para descrever como eu um dia pensei o meu. Tive o seguinte raciocício: enquanto criança e sem uso da linguagem, Helen desconhecia o fato de que era surda e cega. Sua vida, até onde poderia imaginar, em nada era diferente da vida daqueles que a cercavam. Entretanto, tudo isso mudou no que em que ela aprendeu a se comunicar, chegando a um ponto em que pôde compreender que era diferente: ela aprendeu que existia o som - embora o som não pudesse escutar - e existia a imagem - embora a imagem não pudesse ver.
Agora, e se Helen não fosse a exceção? E se fóssemos todos Helen Keller? Talvez não exatamente Helen Keller; quero dizer, e se a visão e a audição não fizessem parte de nosso conjunto de sentidos? Como seria se o mundo fosse mundo, mas as pessoas não pudessem nem ver ou enxergar. Não quero entrar aqui em detalhes muito minunciosos; apenas queria focalizar na ideia central da percepção de mundo; ou seja, da realidade. Tomando por base a história de Helen, não creio que nós humanos - cegos e surdos - não pudéssemos desenvolver a linguagem - e consequentemente muitas línguas. Talvez usaríamos, como Helen e Anne, a palma das mãos para conversar, o papel furado para escrevermos nossos livros e tantas outras formas que são possíveis, mas que não existem porque simplesmente decidimos usar outros métodos de comunicação. Não creio que não poderíamos construir casas, carros, tecnologia, literatura, arte, guerra, religião... Quero dizer que, embora humanos diferentes, não perderíamos nossa humanidade.
Agora, o mais incrível desse cenário não é o fato espantoso de que a visão e a audição - ou qualquer outro sentido - não nos é imprescindível; para mim, o mais incrível é que, nesse mundo cego e surdo, o som não deixaria de existir, a luz não deixaria de existir, o mar azul, os pássaros cantando, o cachoeira estridente... tudo estaria ainda lá. Em nossas línguas, entretanto, não existiriam a palavra som, a palavra luz, o adjetivo azul, o verbo cantar, o adjetivo estridente. Os passáros cantariam, mas não poderíamos jamais imaginar que o fizessem; chamaríamos seu som de 'pescoço tremendo' ou 'jato de ar'. Mas canto para nós não poderia existir.
Eu acredito que é muito possível que tudo isso não seja um mero exercício imaginativo; creio que provavelmente somos todos Helen Keller. Mas não sabemos disso; porque não temos como o fazer. Porque não há uma Anne Sullivan para nos ensinar que existe um mundo para além dos sentidos que a natureza nos deu.

Vídeo sobre Helen Keller

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