Volta e meia, ouço ou leio a afirmação de que o Estado brasileiro é laico e não ateu [normalmente, claro, dita por um teísta]. A frase em si é bastante significativa [e, para mim, bastante entristecedora]; não exatamente pelo seu conteúdo, mas pelo que revela de seus interloculores [ou seja, a maioria esmagodora dos brasileiros, já que tal colocação só poderia ganhar a boca do povo em um Estado teísta, onde se encontram crucifixos nas paredes de tribunais e casas legislativas, canções gospeis nas sessões públicas, Deus na Constituição, argumentos religiosos nas fundamentações judiciais, feriados católicos, para mencionar apenas indícios externos].
O que afinal significa dizer que o Brasil é laico, mas não ateu? Quem o diz, justifica-o completando que aqui ninguém é obrigado a não acreditar em deus. A laicidade traduziria assim a liberdade de crença, inaugurada no Brasil pela corrente positivista que arquitetou a chegada da República. Apesar de alguns pontos controvérsos, poderíamos até afirmar que, ao menos formalmente, o Brasil adote, minimamente, tal opção política [meus pêsames nesta hora ao seguidores do candomblé e da umbanda].
É importante lembrar, entretanto, que o termo laico possui n acepções, principalmente quando analisado historiacamente. No mundo helênico, por exemplo, a laicidade traduzia a ideia de que certas normas não tinha origem divina, mas nasciam de acordos entre os homens. Nesse contexto, a laicidade pode ser associada ao juspositivismo [embora nem todo direito natural tenha como base a religião]. Adicionalmente, o Estado laico também pode ser compreendido como leigo ou secular, ou seja, separado da Igreja.
É nessa terceira acepção que gostaria de me concentrar, especialmente porque é aquela que grande parte das pessoas atribuem ao termo. Mas, antes de fazê-lo, é preciso retornar ao outro combatente da frase inicial: o ateísmo. Embora utilizado comumente em paralelo à religião, o ateísmo dela bastante difere [além de seu conteúdo, obviamente] na medida em que possui base ontológica completamente diversa: enquanto as religiões baseiam-se na crença, o ateísmo caracteríza-se pela descrença. O objeto deus ocupa no ateísmo posição meramente político-social, já que sua influência está diretamente ligada às pessoas que o usam como argumento no discurso. Para religiosos, por outro lado, deus não é somente objeto político ou social, mas entidade per se e razão de ser do homem.
Tomando por base o parágrafo anterior, a afirmação de que o Estado brasileiro é laico e não ateu perde totalmente o sentido, já que para o ateu (assim como para o Estado separado da Igreja) deus não faz parte de sua base de sustentação. Nesse Estado laico (ou ateu), a religião não desempenharia papel, já que deveria ser reservada à esfera privada. Dessa forma, pode-se afirmar que o Brasil é um Estado religioso, o que reflete com muito mais lealdade a opinião dos interlocutores da afirmação contraditória, com a qual tenho que concordar.