domingo, 18 de março de 2012

Pascal, o amor e Buranelli

É engraçado (?) quando se tenta entender os próprios sentimentos. Até estabelecer essa dicotomia: o coração e a razão. Como se houvesse dois oponentes em eterna batalha, ou dois debatedores que buscam, com incessantes argumentos, mostrar qual está certo.

Talvez essa ideia tenha iniciado ou, ao menos, propagado-se, quando Blaise Pascal escreveu, no século 17, a frase que seria posteriormente por tantos citadas: "Le cœur a ses raisons que la raison ne connaît point: on le sait en mille choses".¹ Desentrenhada de seu contexto, a máxima viraria quase uma desculpa dos apaixonados, que a repetiriam sempre que uma atitude inusitada - positiva ou negativamente - devesse ser justificada.

Basta continuar a ler o texto do matemático, contudo, para perceber a apropriação imprópria. Ao tentar separar coração e razão, Pascal nada mais fazia do que explicar sua recém renovada fé, que talvez parecesse contradizer com todo seu legado nas ciências exatas. Sua religião e sua ciência poderiam então conviver, pois habitariam em campos diferentes: "C'est le cœur qui sent Dieu, et non la raison. Voilà ce que c'est que la foi : Dieu sensible au cœur, non à la raison".¹

Ao falar do amor romântico, contudo, seu discurso inverte-se por completo: "L'on a ôté mal à propos le nom de raison à l'amour, et on les a opposés sans un bon fondement, car l'amour et la raison n'est qu'une même chose".² A separação entre amor e razão não traria que prejuízos, pois o verdadeiro amor seria aquele pensado, refletido. Que desserviço assim fariam os poetas ao cegá-lo: "Les poètes n'ont donc pas eu raison de nous dépeindre l'amour comme un aveugle; il faut lui ôter son bandeau et lui rendre désormais la jouissance de ses yeux".²

Justa ou não tal dicotomia, amor e razão permaneceriam em insistente litigância. Foi o que aconteceu, pelo menos, quando Luigi Buranelli foi sentenciado e enforcado em Londres em 1855.³ A nova onda humanista, que passaria a absolver acusados cujas razões não mais lhe serviam, falhou quando a defesa de Buranelli tentou justificar o assassinato que cometera contra o homem que denunciara as relações "impróprias" que Buranelli mantinha com uma albergueira. Não bastava pois que o coração mandasse e a razão não impedisse.

Quase duzentos anos depois, e a pergunta permanecesse a mesma: basta que o coração mande e a razão não impeça? Ou tal colocação não passa de um jogo de palavras de quem não sabe explicar as atitudes que (não) toma?








¹ Pensées de Blaise Pascal. Paris: E. Lagny, 1870, p. 26.
² Pensées, fragments et lettres de Blaise Pascal. Paris: Andrieux, 1844, p.117
³ Medical critic and psychological journal, Volume 2. London: J.W. Davies, 1862. p.83

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