sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Cabeça de Porco

Muitos acreditam que o mês de novembro encerrado entrará para a história. Ou já entrou: quando a polícia do Rio de Janeiro invadiu um conjunto de favelas na zona norte da cidade parecia que o impossível tinha finalmente se tornado possível: o tráfico não era mais indestrutível. Para uns, esses dias que se passaram marcam um sinal de grande esperança: os moradores dessas localidades, grande parte cansada da violência diária. A parte mais nobre da cidade talvez tenha tido também um sentimento semelhante: como se fosse esse o primeiro passo rumo a um Rio de Janeiro com menos tiro, menos morte e menos drogas. Outra parte da população talvez tenha visto os eventos com outros olhos: os fora-da-lei que se transformaram em dentro-da-lei (dentro de um inquérito, para ser mais exato).
Há pouco mais de cem anos, a mesma cidade assistiu a um processo semelhante: a destruição do cortiço Cabeça de Porco em 1892. Imortalizado por Aluíso Azevedo em seu livro O Cortiço, o Cabeça de Porco veio ao chão dois anos após a publicação do romance naturalista. Há, claro, muitas diferenças entre os dois episódios e - também - muitas semelhanças. Frutos da crise habitacional - ou inchaço populacional, como queiram liberais ou conservadores -, o cortiço e a favela são a imagem da pobreza e da ausência do Estado. Para o primeiro, a solução foi sua aniquilação; para o segundo, foi a retirada do poder paralelo e a preservação de suas construções.
Aluíso descreve seu cortiço como um organismo vivo. De fato, longe do Estado, o cortiço tinha vida própria: era a república do cortiço! - nas palavras do autor. Com o Estado, ele não existe mais: não aceitaram uma república dentro da outra. Talvez seja esse o ponto chave na história do Cabeça de Porco: a morte da república do cortiço quase se coincide com o nascimento da república do Brasil. Morte e nascimento ocorrem na mesma cidade; as mesmas pessoas testemunham os mesmos eventos. A pobreza do Rio sofre duas vezes: por perder seu rei abolicionista e por perder a sua casa. A república do Brasil lhes tirou tudo que tinham.
A invasão do Alemão parece ter ido por um caminho oposto: as casas continuam no lugar e os moradores parecem satisfeitos com a entrada do Estado. Faltou ao tráfico talvez construir a república das drogas, pois, sem ela, não havia do que sentir falta.
E se o Estado tivesse decretado a libertação das drogas? Teríamos o mesmo efeito? É difícil responder: já não temos mais um rei que enfrenta os barões nem um modelo novo para brincarmos de reconstruir a nação.




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